<$BlogRSDUrl$>

quinta-feira, agosto 16, 2007

A Banda de uma nota só 

Era uma noite quente de verão, sexta-feira. Sem aviso algum, muito menos chuva no céu limpo, a escuridão e o silêncio tomaram conta de tudo.

Parados no sofá, ainda com parte do filme impressa na retina, demoramos para entender que a luz havia acabado. Falta de energia, blecaute na cidade. Não se lembravam da última vez que isso ocorrera, além dos pequenos cortes para manutenção, normalmente aos sábados na hora do almoço. O que fazer na penumbra?

Tateando pela casa, achei na cozinha um punhado de velas que logo fixei em pires maltrapilhos, órfãos de xícaras. Enquanto eu gotejava cera, ela se sentou na frente do piano, depois de tantos anos. Desde que os filhos deixaram a casa para correr o mundo, quase dez anos atrás. O tempo voa e nos atropela.

Sentei no grande sofá da sala de estar, perto do piano, ela dedilhando as primeiras notas. Não trocamos uma palavra, sabe, estávamos assistindo ao filme meio brigados. Vi pela janela que as pessoas estavam saindo para a rua, perdidas no século XXI sem eletricidade. Algumas conversavam, algumas bebiam, a maioria olhava o bairro sitiado pelas sombras como num sonho ruim.

Aos poucos, a garganta empoeirada e seca do piano, despertando tons quase mumificados, foi retomando sua cantiga habitual, e o allegretto da sonata opus 31 n°2 ecoou pela noite escura como um espírito.

Sem murmurinhos de Tvs, zumbidos de computadores, reclamações de ar-condicionados e lamentar de ventiladores, Beethoven cantou, somente um piano há muito calado. Até o vento, que nunca pára, deixou as chamas das velas em paz, retas e longas. Fechei os olhos, cada nota lambendo a escuridão e sumindo no infinito.

Notei que as pessoas lá fora, na rua, também escutavam. Caladas também, algumas se aproximavam vindo das sombras com algumas velas e lanternas erráticas, parando na frente da minha casa. Mesmo no blecaute, muitas fecharam os olhos também.





A mágica do instante atemporal se rompeu, explodindo ardida com a luz que voltara bruscamente. Provido de energia elétrica, o mundo deixou a escuridão, o piano e o silêncio para uma estranha lembrança quase onírica.

Todos na rua voltaram para suas cacofônicas sinfonias privadas, deixando só o zumbido da luz alaranjada do poste e um carro em sua pressa.

O piano também calou.

Apaguei a última vela, que protestou com grossa fumaça branca antes de morrer.


"What has become alien to men is the human component of culture, its closest part, which upholds them against the world. They make common cause with the world against themselves, and the most alienated condition of all, the omnipresence of commodities, their own conversion into appendages of machinery, is for them a mirage of closeness."

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Weblog Commenting by HaloScan.com