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segunda-feira, novembro 27, 2006

Dores 

Devolveu o copo na estante ao lado da cama, arrotou o amargo gosto do remédio efervescente e voltou a deitar.

Lia a bula, rezando para que o maldito analgésico/antiinflamatório fizesse efeito logo. Um elefante usando salto fino pisava naquele momento em seu dedão do pé direito, por baixo de uma horrenda unha negra: como pode um simples dedão do pé doer tanto?

Qualquer racionalização imbecil ajudava clarear o borrão infinito do corpo que agonia:
"(...) A exemplo do que ocorre com outros antiinflamatórios não hormonais, o fármaco reduz a agregação plaquetária e prolonga o tempo de coagulação;(...)"

Riu mais amargo que o arroto anterior, jogando no chão, junto com a bula, aquela insistente idéia, diabolicamente estúpida, daquelas que aparecem na cabeça vindo sabe-se lá de onde e zumbem nos ouvidos como moscas negras:

Hora perfeita pra cortar os pulsos!

Depois de tomar um remédio pra dor no dedão? - Respondiam, dentro dele, infinitas outras vozes.

Mas só uma latejava e orbitava entre a razão e o abismo.

Será que esse remédio ainda demora fazer feito??

"All great truths begin as blasphemies"

sábado, novembro 25, 2006

Reinclusão digital 

Ufa!

Como é bom estar de volta!

Diria que minha nave-mãe teve problemas, e me abandonou em órbita por mais de uma semana. Sozinho, isolado, preso naquela coisa estranha lá fora chamada realidade...

Ainda bem que o santo técnico e sua magia conseguiram recuperar a placa sem a necessidade de um novo computador. "Nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres"

Não imaginei, já que cresci antes da Internet e da revolução digital, que fosse sentir tanta falta de um computador. Amigos e familiares à milhares de quilomêtros, o jornal fresco do dia, informação, trabalho, lazer...

Achava que só ia depender de uma máquina quando estivesse na UTI.

Mas o coma passou, o silêncio se desfez e todo mundo viveu feliz para sempre.

Graças a Deus eu ainda tinha um caderno velho e uma Bic (tudo bem que era vermelha) pra manter alguns velhos vícios.

"He goes seeking liberty, which is so dear, as he knows who for it renounces life."

segunda-feira, novembro 13, 2006

Amanhã 

"Eu não sei mais quem sou; ou quem é esse eu perdido nesse corpo. Não tenho certeza se essa é realmente a minha vida.
Olhando fixamente para dentro, para o fundo negro do abismo, tenho certeza que vivo o destino de outro, de outro lugar e outra época, como uma patética ovelha negra cósmica.

Sei que ultimamente qualquer um tem se sentido assim, normalmente no trânsito engarrafado enquanto vai ao trabalho em uma segunda-feira de manhã.

O problema é que ontem, domingo, brincava em casa com meu filho de 2 anos. Jogávamos futebol enquanto minha esposa preparava a macarronada do almoço. Os cachorros corriam conosco, pulando como os loucos que são. Domingo qualquer, quente, calmo, com futebol e Faustão na tv.

Hoje, acordei. Ou não, não tenho certeza. Quer dizer, claro que estou acordado, consciente, escrevendo em uma cama de hospital. É segunda-feira, me informaram. Ontem me lembro de estar brincando...

Mas ontem ficou 17 anos para trás. Foi quando eu caí, bati a cabeça forte e entrei em coma. Foi o que me disseram. Sei que é verdade, mas não acredito. Isso é uma piada cretina, é roteiro de novela melada, filmeco pra TV. 17 anos??

Sandra não veio me ver ainda. Ninguém me falou nada, mas tenho certeza que casou novamente.
Entrou um rapaz hoje aqui, nos olhamos por um longo tempo. Claro que eu sabia que era o meu Pedrinho, e vi num relance que ele lembrou-se, mas logo ele fechou a cara e foi embora, com raiva. Dizer que não tenho mágoa é bobagem, como ignorar minha frustração, impotência, fúria, desilusão, angústia, loucura, também. Mas entendo ele. Faria a mesma coisa se pudesse. Levantar, sair andando e voltar para minha vida de ontem.

Claro que não é assim tão simples, falta o ingrediente mais sádico desse meu pesadelo: não estou curado!

Não só isso, corro sério risco de morte. Não é inspirador?

Tudo que me resta é a ironia. Ou isso ou a loucura, que me convida a cada segundo de braços abertos: a hemorragia não parou, o que eles fizeram foi conseguir me tirar do coma depois de todo esse tempo, então me deixaram 'escolher'...

Opero, 50% chance de sucesso.
Não opero, 0% chance de sucesso. Bomba-relógio na cabeça, com a contagem regressiva já zerada. Morro se ficar de pé.

Resumindo: lance uma moeda. Cara você vive, coroa você morre. Simples, né?

Escolhi a operação. Ou me iludo que isso é uma escolha, mas não importa.

Acho que não deve ser muito patológico eu estar um pouco confuso...

Escrevo essas últimas palavras sem saber muito bem porque. Entregue ao meu filho, ou a Sandra, se algo der errado. Gostaria de poder falar, e lhe dizer tudo. Tudo que não cabe no papel, e me rodopia por dentro.

Lembro-me que disse que seu trabalho não é fazer ninguém chorar, mas sei que vai ficar feliz em saber que estou chorando feito um bebê agora. Finalmente, não é?

E pensar que um psicólogo foi a coisa mais sã desse sonho estranho...
Sério, obrigado por tudo.

Gostaria da certeza de dizer-lhe: até mais.

Mas se meu ontem aconteceu há 17 anos, não tenho a menor certeza do amanhã.

Afinal, não dizem mesmo que o amanhã nunca chega?

F. V. M."



"Não levou um tostão
Porque não tinha não
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo
Um violão"




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