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quinta-feira, agosto 23, 2007

Estopim 

I

Estopim parou próximo a enorme cerca que marcava os limites da fazenda, ao final da estrada. Acima da porteira, uma placa feita de tronco de jacarandá exibia as letras em cal: "Fazenda Ordem e Progresso". Estopim era um jovem asno, mas inteligente o suficiente para ler.

Ficou ali parado, fascinado com a paisagem verdejante após a cerca. Estava cansado e com sede, depois de atravessar léguas e léguas de caminhos tortuosos por serras inóspitas e sertões mortais. Não imaginava encontrar aquele oásis de fartura e riqueza numa região tão árdua e carente. Enquanto admirava a beleza da fazenda, um homem vestindo boas roupas de trabalho, com um sorriso no simpático rosto arredondado, se aproximou do visitante, avaliando a vitalidade e força do seu corpo.

- Venha, venha. - chamou, abrindo a porteira para Estopim entrar. - você deve estar com sede. Seguiram por uma estrada ladeada por altas palmeiras e pitangueiras carregadas. Por todo lado haviam plantações, hortas, pássaros em árvores majestosas, de copas altas, sombras frescas e verde profundo. Pararam em um poço de águas transparentes, alimentado por um dos vários canais que cortavam toda fazenda. O homem carismático encheu ali um balde e ofereceu à Estopim: - Meu nome é Xavier, sou o administrador da fazenda. Capataz, como me chamam, mas não gosto desse termo.

Bateu de leve no lombo de Estopim, sentindo a musculatura abundante, o pêlo castanho bem cuidado. -Você não é daqui, vejo logo. Veio das terras frias lá do sul? É uma longa viagem, amigo. Está com fome?
As estradas e caminhos da fazenda, no meio da manhã, tinham um fluxo impressionante de trabalhadores, carregando sementes, arados, cestas e cestas de frutas, verduras, ovos, queijos curados, carnes secas, café, açúcar e farinha. Xavier apanhou de uma cesta que passava um enorme caju amarelo, inchado, e deu para Estopim comer.

- Venha, vou lhe mostrar uma coisa.
Todas as estradas levavam a uma enorme casa branca, de imensas varandas, no alto de uma pequena elevação. - Esta é a Sede, onde mora o genial Coronel. Ele é dono de tudo isso, meu caro asno. Vou lhe mostrar nosso segredo.

Perto da casa grande, havia um prédio muito estranho cheio de correias e rodas, canos e barulho. Entraram por uma porta baixa, no que Estopim achou que era um moinho, até o centro da estrutura. - Veja. Xavier indicou uma enorme roda de moinho, movida por tração animal.
- Sim, tudo o que vê aqui é graças a isso: bombeamos água fresca das profundezas da terra, moemos grãos para fazer farinha, geramos força para o Engenho, para a serraria... Esse sistema complexo é único em todo mundo! Coronel inventou em suas longas viagens além mar, quando chegamos aqui só havia areia e moscas. - apanhou uma grossa cenoura - Vejo que é um asno jovem, forte e inteligente. Gostaria de colaborar com esse nosso paraíso?

Tomado de admiração por tudo que vira, honrado pelo convite, Estopim aceitou de imediato, e logo foi colocado para empurrar a enorme Roda que tudo movia. A cenoura foi pendurada por uma vara de bambu com uma corda de pesca, ficando a alguns palmos do seu focinho. - Para incentiva-lo, logo terá cestas e cestas de cenouras como essa - disse Xavier, e saiu para administrar todos os outros problemas.



II

O Mundo girou os dias, Estopim girou a Roda, a Fazenda gerou riqueza e fama. Mas a cenoura o asno nunca conseguiu pegar, apodrecendo e murchando na sua frente. Ao verem Estopim desanimando, trocavam por uma maior e mais fresca: - Um dia terá fartura, asno. Só trabalhar duro.

E a Roda girou mais, e a cabeça de Estopim girou mais ainda, com o estômago doendo de fome e esforço, com voltas e voltas e voltas sem comer.

Estopim foi ficando cansado, magro e triste. Seu corpo faminto devorou o que era gordura, depois o que era músculo, e começou a devorar seu belo pêlo, que agora caía em abundância. Seus cascos perderam as ferraduras, racharam e sangravam, seu couro afundou no esqueleto, mas Estopim continuou a girar a Roda, pensando na recompensa débil pendurada em sua cara, no orgulho de ajudar acontecer Ordem e Progresso.

Em mais um dia qualquer, de sacrifício e fome, Judas entrou na sala da Roda. Era um garoto baixo e magro, sardento, com olhos cinzas e cruéis. Trabalhava na Fazenda, mas adorava espalhar boatos maldosos, judiar de quem podia, fugir pra caçar e pescar assim que tinha a chance. Em seu mundo giratório, porém, Estopim não sabia que Judas era Judas. Tinha apenas frustração, cansaço e raiva das pessoas que passavam carregando cestos cheios até a boca, mas nunca lhe atiravam nem uma migalha. E quando Judas se aproximou, carregando uma vareta afiada, Estopim pensava em girar a Roda para um dia comer sua cenoura.

Mas Judas tinha sua natureza, e logo começou a cutucar o asno, zombando de sua fraqueza, exigindo que ele trabalhasse mais, girasse mais rápido, mais forte, plaft plaft plaft, batendo em seu traseiro, asno preguiçoso, gire, gire, gire.

Estopim, cansado e faminto, também tinha sua natureza de asno, e eles tem o péssimo hábito de coicear. Antes que o raciocínio desse conta da privação, agora exagerada pela humilhação, Estopim acertou Judas no meio da boca, fazendo-o cuspir três dentes ensaguentados antes de sair correndo, chorando com surpresa e medo.



III

Estopim continuou girando e girando. A fome quase virou loucura, que ele afastava com a honra e orgulho de fazer a fazenda um lugar melhor no mundo.
Até que o Coronel, que todos temiam, veio ver Estopim girar. O coração do asno se encheu de esperança, agora finalmente teria sua cenoura, quem sabe até uma palavra de agradecimento e incentivo.

Mas o Coronel, em suas roupas de couro negro, tinha seu olhar mais negro ainda, carregando um enorme chicote com pontas de ferro nas mãos. - Asno! - rosnou, e começou a bater em Estopim com violência, fazendo riscos de sangue no couro e dor alucinante na alma. - Gosta de coicear, não é? - gritava o Coronel, trocando o estalar do chicote por chutes firmes com a ponta férrea da bota nas costelas aparentes e fundas do faminto animal.

Havia sangue na cenoura já um pouco enrugada. Pequenas gotículas que espirraram do asno que apanhava e sofria. Estopim tentou aguentar tamanha violência em silêncio, mas logo a fome, a privação e a infinitude do seu girar romperam o dique em lágrimas e explicações. Pare de fazer isso, tentou dizer Estopim, não vê que não aguento mais de fome, que só faço girar sua Roda sem receber nem essa maldita e pouca cenoura!

O Coronel parou. Confuso e amedrontado, tomado por toda fraqueza de tanto tempo de esforço, Estopim teve a leve impressão de ter sido compreendido com o súbito cessar da violência. Mas viu os olhos do Coronel, cobertos por nuvens tão negras quanto apocalíticas, antes que ele saísse gritando por Xavier.

Agora parado, Estopim conseguia ouvir a conversa gritada do lado de fora: - EU QUERO ELE MORTO! Ele bateu em um pobre menino trabalhador, e isso é inadmissível. Ele ainda teve a ousadia ZURRAR pra mim. PARA MIM! Quero sua cabeça pendurada na porteira da fazenda, Capataz! - Xavier, em voz baixa, tentava acalmar o Coronel, tentava fazer com que ele mudasse de idéia, mas sem enfrenta-lo: isso ninguém podia. Nada adiantou, o Coronel gritando em fúria cega enquanto voltava para a Casa Grande, onde o almoço era servido. - Zurrou para mim! Machucou uma criança! Sacrifiquem ele!

Xavier entrou na sala da Roda, carregando o martelo afiado usado para matar bois. Estopim, magro e ridículo, tremia como bebê recém-nascido. Não vomitara porque nada tinha para vomitar. Nem pra isso.

Olhando o animal ali, faminto, sangrando e triste, Xavier ficou cheio de dor no coração. Baixou o martelo no chão, liberou o arreio que prendia Estopim à Roda, e lhe entregou a cenoura murcha e manchada de sangue, devorada num instante.

Estopim mancou lentamente até a porteira da Fazenda, um espantalho apodrecendo e soltado pedaços. Xavier abriu e indicou a estrada, o rosto simpático cheio de compaixão e pesar. Ambos lembravam do Estopim que chegara ali, jovem e forte, corajoso e destemido, o coração cheio de sonhos. -Vá, fuja.

Já era noite quando Estopim chegou ao cume do enorme morro que escondia a fazenda do vento seco do agreste. Moscas infestavam suas chagas, que pingavam sangue marcando todo caminho desde a Ordem e Progresso. Havia uma festa importante e chique na Casa Grande, toda iluminada na escuridão. Muitas vezes Estopim ouviu, enquanto girava, festas e cerimônias pomposas, fartura e felicidade. Mas daquela distância apenas ouvia uma música sem sentido, e o que viu nas sombras das janelas, quando fez esforço e apertou bem os olhos, foram vultos fornicando, porcos numa orgia enlameada.

O asno suspirou seus sonhos, seu orgulho e sua profunda admiração pela fazenda. Outros fariam a Roda girar, a fazenda seria cada vez mais verde, viva e farta, alimentando toda região. No breu, verteu algumas lágrimas.

Enfim, sem força nenhuma, a não ser viver, Estopim saiu em disparada pela noite, no longo caminho de serras e sertões.

"Vou correndo, vou-me embora
Faço um bota-fora
Pega um lenço e agita
Cumpre o teu dever
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara cara a cara
Com o que não quer ver"

quinta-feira, agosto 16, 2007

A Banda de uma nota só 

Era uma noite quente de verão, sexta-feira. Sem aviso algum, muito menos chuva no céu limpo, a escuridão e o silêncio tomaram conta de tudo.

Parados no sofá, ainda com parte do filme impressa na retina, demoramos para entender que a luz havia acabado. Falta de energia, blecaute na cidade. Não se lembravam da última vez que isso ocorrera, além dos pequenos cortes para manutenção, normalmente aos sábados na hora do almoço. O que fazer na penumbra?

Tateando pela casa, achei na cozinha um punhado de velas que logo fixei em pires maltrapilhos, órfãos de xícaras. Enquanto eu gotejava cera, ela se sentou na frente do piano, depois de tantos anos. Desde que os filhos deixaram a casa para correr o mundo, quase dez anos atrás. O tempo voa e nos atropela.

Sentei no grande sofá da sala de estar, perto do piano, ela dedilhando as primeiras notas. Não trocamos uma palavra, sabe, estávamos assistindo ao filme meio brigados. Vi pela janela que as pessoas estavam saindo para a rua, perdidas no século XXI sem eletricidade. Algumas conversavam, algumas bebiam, a maioria olhava o bairro sitiado pelas sombras como num sonho ruim.

Aos poucos, a garganta empoeirada e seca do piano, despertando tons quase mumificados, foi retomando sua cantiga habitual, e o allegretto da sonata opus 31 n°2 ecoou pela noite escura como um espírito.

Sem murmurinhos de Tvs, zumbidos de computadores, reclamações de ar-condicionados e lamentar de ventiladores, Beethoven cantou, somente um piano há muito calado. Até o vento, que nunca pára, deixou as chamas das velas em paz, retas e longas. Fechei os olhos, cada nota lambendo a escuridão e sumindo no infinito.

Notei que as pessoas lá fora, na rua, também escutavam. Caladas também, algumas se aproximavam vindo das sombras com algumas velas e lanternas erráticas, parando na frente da minha casa. Mesmo no blecaute, muitas fecharam os olhos também.





A mágica do instante atemporal se rompeu, explodindo ardida com a luz que voltara bruscamente. Provido de energia elétrica, o mundo deixou a escuridão, o piano e o silêncio para uma estranha lembrança quase onírica.

Todos na rua voltaram para suas cacofônicas sinfonias privadas, deixando só o zumbido da luz alaranjada do poste e um carro em sua pressa.

O piano também calou.

Apaguei a última vela, que protestou com grossa fumaça branca antes de morrer.


"What has become alien to men is the human component of culture, its closest part, which upholds them against the world. They make common cause with the world against themselves, and the most alienated condition of all, the omnipresence of commodities, their own conversion into appendages of machinery, is for them a mirage of closeness."

quarta-feira, agosto 15, 2007

Aos 16, não colocava título em nada 

Eu me procuro por aí,
buscando essa pessoa que nunca perdi
e que nunca encontrei.

Então busco-a em mim mesmo,
e jogadas a esmo
só encontro mentiras.

And the sign says "long hair freak people need not apply"

quinta-feira, agosto 09, 2007

Pois é, querido bardo 

De vez em quando, no meu caso quase sempre, alguém vem e diz o que você precisava ouvir. Ou o que seu peito precisa explodir.

E por isso a pessoa é genial.

Nao é a primeira vez, nem a última, que trago o mestre Buarque, íntimo Chico, para falar por mim.

Garanto que meu caso não tem nada do mote 'simplista' dos desencontros românticos, donde deve ter nascido a inspiração.

Sorte mesmo é a seleção aleatória do Media Player escolher, entre pouco menos de 4000 músicas, uma que canta assim:

"Pois é
Fica o dito e o redito por não dito
E é difícl dizer que foi bonito
É inútil cantar o que perdi

Taí
Nosso mais-que-perfeito está desfeito
E o que me parecia tão direito
Caiu desse jeito sem perdão

Então
Disfarçar minha dor eu não consigo
Dizer: somos sempre bons amigos
É muita mentira para mim

Enfim
Hoje na solidão ainda custo
A entender como o amor foi tão injusto
Pra quem só lhe foi dedicação

Pois é, e então..."

terça-feira, agosto 07, 2007

Tempo de silêncio 

Peço a todos
um minuto de silêncio,
por mim.

Por esse herói patético,
sonhador perdido,
que não consegue amar o lucro.

Por esse humanista ingênuo,
racionalista tolo,
que acha que as pessoas são melhores do que são.

Por esse mártir débil,
bode expiatório e boi de piranha
que sangra por si, todos e ninguém.


Peço a todos
minutos de silêncio,
por nós.

Por essa horda primeva,
inconsciente e estúpida,
que finge que não é bárbara em todas as esferas.

Por esse macaco disfarçado,
supostamente moral e ético,
que se julga um indivíduo livre.

Por esse bicho injusto,
iludido e egoísta,
que mente uma democracia.



Peço um tempo de silêncio,
para esse silêncio que nunca existiu,
senão na morte.



"And twisted thoughts that spin round my head, I'm spinnin'
Oh I'm spinnin', how quick the sun can drop away
And now my bitter hands cradle broken glass of what was everything
All the pictures have all been washed in black"

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