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terça-feira, novembro 11, 2008

Ultraviolet amphibian dreams 





"Poetry is the art of creating imaginary gardens with real toads."



quinta-feira, novembro 06, 2008

Entalado na garganta 

Na briga com espinhos afiados e mortais, todo prazer do jantar esvai-se rápido, insatisfeito e complicado. Nem gosto tanto de peixe, mas o velho devora ágil, animal treinado nas artes da pesca e comida farta. Hoje é dia de celebrar, disse ele, esse peixe é iguaria rara e cara, só esse chef sabe preparar corretamente. O nome escapou-me, inteligível e desinteressante. Não cheguei a abrir o cardápio, mas o couvert prometia uma bela refeição. Um suspiro me escapa discreto, enquanto deito os talheres no prato.

Incapaz de lembrar que não gosto de beber enquanto como, meu tio pede ao garçom mais dois uísques, ainda que em meu copo os 21 anos de paladar empoçaram pela metade, quente e desagradável. Mas ele está empolgado e feliz, chegou o grande dia. Vejo a gordura brilhar em seus lábios glutões, a realização de finalmente anunciar sua aposentadoria, e entregar a mim o trono de seu legado, iluminando seus olhos de predador. Nos preparamos toda uma vida para isso, brindou-se, viva a conquista ao fim da grande jornada.

A única coisa errada sou eu, algo dentro de mim que não condiz com o momento. Por que sinto esse vazio, agora que venci?

Sonho acordado, em desacordo comigo mesmo.

Meu tio fez muito sucesso e riqueza na década de noventa, quando trocaram do dinheiro as caretas de patriarcas e coronéis carrancudos por animais selvagens, fauna brasileira. Viva a Real selva capitalista moderna, livre de zeros inúteis e planos desastrados.

Negociatas, contratos milionários e licitações importantes, ele soube explorar bandeirante as privatizações e a abertura econômica. Hoje me entrega o complexo império, ele já começando caducar, maquinaria gasta e murcha embaixo de banha e rugas. Dele aprendi tudo que sei profissionalmente, e contaminei-me com certos hábitos ridículos, vícios poderosos e múltiplos prazeres.

Será que isso que sinto é a falta de companhia feminina nessa mesa? Pode somente um homem idoso, e um já passando de meio século, jantando a sós, ser tão deprimente?

Minha vida é ímpar, eu ainda a procura de um par. Companheiras foram algumas, que até alucinei casar, mas eram todas executivas – não de terno e gravata como eu, mas também desinteressadas em qualquer ato por menos de um milhar de beija-flores. Existe diferença entre meu sucesso e o trabalho delas, até daquelas que por uma garoupa você leva tudo que puder? Moralmente não, sexualmente sequer, se não na ordem dos fatores, quem paga, quem recebe.

E o tal amor deixei em uma fotografia de uma garota de 14 anos, sorrindo décadas atrás. Minha vida atrás.

Eu preocupado em encontrá-la, como ao acaso na saída da escola, para um cortejo encabulado. Minha mãe veio me dizer que, ao fim das aulas, iria me mandar para a capital: São Paulo é o mundo do Brasil, vai com teu tio que ele tá rico por lá. Com questões muito mais importantes na época, no caso saber se o atacante do meu time jogaria na final do dia seguinte, respondi que tudo bem, achava ótimo. E assim, aos 15 anos, vinha trabalhar nessa cidade.

Coitada de mamãe, morreu só, nem tive tempo de transferi-la para um hospital melhor (e mais perto). Só fui visitar seu túmulo uma vez. Ela fez questão de ficar por lá, cidadezinha típica de Minas que outrora também chamei de minha.

Engolindo o resto etílico antes que o garçom levasse, pensei como daria tudo para voltar. Mas dessa tal saudade sempre corri, fraco que sou, não gosto da dor que ela provoca. Por que agora ela resolve apertar meu peito desse jeito, nessa noite que deveria ser o grande momento de minha carreira?

Meu tio não parava de falar, entre um gole e uma garfada, infinitos conselhos, histórias e obrigações que eu já sabia de cor. E brindes e gargalhadas, tentava me contaminar com sua mania, insistindo para que eu bebesse mais, feliz como nunca o vi.

E eu com dificuldades cada vez maiores de sustentar o sorriso, amarelando e começando a doer no meu rosto. De maduro à podre, logo caiu. Nunca me vi tão infeliz.

Ou só agora, desse meu cume, que percebo tal fato? Posso comprar, a vista e em espécie, essa felicidade que me escapa? Tenho poder nas mãos, tenho os bolsos transbordando e toda tralha inútil que quero ter.

Olhando fixo para o prato, e sua carcaça semidevorada, minha mente corre para longe, para uma paz e satisfação que sei que perdi. Quando? Onde?

A saudade esmaga tanto que é impossível ignorá-la. Deixei com meus sonhos, minhas esperanças e possibilidades alguma coisa que nunca cheguei a ter. Não tive tempo, não lhes dei atenção. Estala em minha cabeça, olhando o caminho que percorri e aonde vim parar, que fui um idiota. Que porra eu fiz da minha vida, pra que tanto dinheiro assim? O que vou fazer com ele?

A imagem da casa de minha mãe, uma fazenda e a vida crescendo vagarosa em volta, paz bucólica, sincera e tola, é a única certeza que tenho. É a única resposta para esse buraco em mim.

Respirei fundo, bebi tanto do novo copo de uísque que meus dentes reclamaram gelados, e num impulso falei:

- Tio, agradeço a oportunidade, e tudo que me deu na vida, mas não quero o seu lugar não.

Ele me olhou arregalado, como se eu fosse um estranho. Quase engasgou. Engraçado essa capacidade de ler a expressão alheia, meu lado símio dizendo que ele não me reconhecia em absoluto. Fosse um enredo de mundo de novela, quem estava jantando com ele era algum irmão gêmeo meu, idêntico e maléfico, desaparecido até tomar meu lugar.

-Vou voltar para Minas, me assisti dizendo, recomeçar minha vida.

Um longo silêncio. Nós dois pensando no que diabos eu acabara de falar. Achei que ele fosse ter um treco, vermelho e suando. A adrenalina me fez rir, descontrolado.

Mas tinha certeza absoluta e irredutível que estava falando a verdade, principalmente para mim mesmo. Retomar minha vida.

Por fim, ele quase gritou, confrontando com olhos assustados e desesperados.

-Tá louco??

Agarrado na sensação daquele alívio feliz, respondi:

- Às vezes, a melhor alta do hospício é pular o muro.









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"E isto em segundo lugar: Manda-se naquele que não pode obedecer a si próprio. Tal é o modo do vivente."

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