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segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Pontual 

Meu avô estava sempre em silêncio, ranzinza, uma enorme e aterrorizante carranca de olhos duros e poucas palavras. Era o tipo de homem que regulava a vida, pública e privada, com autoridade baseada no punho de ferro, na personalidade inquestionável, no respeito temeroso. Um homem enorme, árvore gigantesca que parecia indiferente aos ventos, de sombra longa e eterna; tipo de homem que hoje em dia não se vê, derrubaram o patriarcado ao som da motosserra.

Desde menino, nós morando em sua casa depois que minha avó morreu e papai se complicara nos negócios, vivia seguindo ele pelos cantos, furtivamente observando seus atos. Temeroso e fascinado, com o cuidado de quem segue um tigre pelas matas. E logo cedo percebi a paz discreta que o envolvia todas as vezes que se ocupava dos seus relógios.

Na mesma mesa enorme da sala de jantar, de profundo negro reluzente que escrevo agora, meu avô abria sua caixa de ferramentas e zelava suíço os dois mágicos carrilhões que trouxera consigo da Europa. O cheiro de metal, madeira e graxa impregnaram minha alma de tal forma que ainda hoje lembro, de um ponto de vista pouco maior que a altura do tampo da mesa, meu avô e suas engrenagens, e seus maravilhosos relógios ajustados pelo Big Ben, sempre pontuais, não de simples tic-tacs onomatopéicos, mas ecoando gigantes, corações ancestrais ditando o ritmo do tempo e a ordem do universo.

Dessa cumplicidade entre menino e velho, brotando no lapso entre gerações, herdei não só a paixão e o zelo pelas belas maquinarias que meu avô tanto amava, hoje sob meus cuidados, como minha própria personalidade: como sempre disseram aqueles ao meu redor, eu mesmo acabei me tornando um relógio. Buscando a regularidade inabalável, confiável, tornei-me uma pessoa de hábitos e horários perfeitamente encaixados. Sempre acordei as 6 da manhã; sempre tomei minha xícara de café com leite, um pão francês com margarina e uma fatia de mamão; lia o jornal em 45 minutos; estudei e trabalhei sempre nos mesmos lugares, enquanto possível; todos meus pertences são meticulosamente arrumados, de maneira prática e objetiva; tudo, da tarefa mais simples do cotidiano ao planejamento de minha vida a longo prazo, era agendado em minha cabeça, quanto tempo demandaria, qual o melhor momento para faze-lo, a hora ideal.

Fui me apronfudando nessa vida pontual, mecanizado cada vez mais ao longo dos anos conforme encontrava problemas em engrenagens que nunca aprendera consertar. Tirando os pequenos desgastes e quebras previsíveis, o mundo saiu de seu caminhar perfeito quando perdi minha esposa em um acidente de carro. Mariana, nossa primeira e única filha, tinha apenas 4 anos na época.

Não me envolvi com outra mulher, ajustei meus ponteiros para o trabalho e Mariana, concentrado para novamente regular meu coração ao badalar cotidiano do mundo ao meu redor. Mas é complicada a ausência de uma mãe, ainda mais para uma menina, e o combustível da puberdade explode ao menor contato com a monotonia conservadora de alguém como eu. Conforme fui me tornando cada vez mais relógio, Mariana se distanciava, rebelde, um animal selvagem preso entre minhas engrenagens. Na complicada juventude de hoje em dia, se envolveu com um jovem rebelde e delinquente da rua de baixo, que acabou se tornando um temido traficante do bairro. Meu oposto, explicações freudianas evidentes.

Aos 17 anos, ela anunciou em lágrimas, se aproximando de mim pela primeira vez em muito tempo, que estava grávida do marginal arrogante e violento que debochadamente me chamava de "Sr. Cuco".


Quando ligaram do hospital, estava quase na metade da minha hora de leitura. O telefone clamou duas vezes, a meu contragosto, e mais três no trajeto da poltrona até o aparelho. Acontecera um acidente, Mariana estava no hospital, perdera o bebê. Meu neto. O berço, ainda desmontado, ocupava a sala com suas caixas de papelão e o cheiro de novo.
Nessas discrições telefônicas, só ao chegar lá que seu rostinho inchado e manchado golpeou-me com a dolorida verdade: o animal batera nela. Até ela abortar.

Passada a tempestade, o mundo ainda pingava molhado sob o sol. Mariana repousava no quarto, depois da alta, longe de tudo que pudesse lembrar o filho perdido. Devolvi o que pude do enxoval, escondi com vizinhos o resto. Tudo de volta ao seu lugar, sincronizado. Ao retornar para minha hora de leitura vespertina, o violento e agreste Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, deixou-me confuso e atordoado. Os pensamentos se misturavam, borrados, harmônicos. Insisti, até que uma mola se partiu. Não conseguia mais ler, girando em falso ao redor de uma única frase, que sugava tudo, até minhas lágrimas: "Donde que o homem esguicha sangue mais longe do que pode cuspir."

Ruminando esse marca-passo rústico, me vi apanhando a pesada caixa de ferramentas, já salpicada de ferrugem. Não sei bem porquê escolhi aquela chave de fenda torta de cabo amarelo, envergada por alguma imprudência ainda na época de meu avô, única ferramenta imperfeita que por algum motivo ele, depois eu, guardamos.

Estranho como todo o álibi, a viagem para o interior com um amigo corretor, a reserva e despesas na pousada, entre outros detalhes sutis, brotou cínico, como se sempre estivera maquiavelicamente trancado em uma gaveta de meus corredores mais escuros, e eu simplesmente descobrisse a utilidade daquela chave perdida no molho.

Esperei na sombra da escadaria do bairro, inerte, contando as horas passar. Finalmente ele apareceu, subindo do bar para casa, previsível, embriagado e arrogante. Chegou a sorrir para mim, e até se perguntar o que o débil velho Cuco fazia ali, àquela hora da madrugada, segurava nas mãos a barriga perfurada por golpes e mais golpes, mecânicos, furiosos e intermináveis como as doze badaladas. O primeiro filete de sangue escorreu pelos degraus, ele agonizava baixinho, esvaziando, e eu já estava longe dali.


Acordei bem mais tarde que o normal, quase nove, de um sono comatoso. Mariana batia na porta, soubera da notícia: acerto de conta entre traficantes. Chorava e sofria, aliviada em cada lágrima do amor trágico, perdida como um escravo liberto. Nos abraçamos longamente.

Ao chegar a sala, como se o nascente fosse ao norte, no meio da noite, percebi o compasso de tudo fora de lugar. Passei em frente aos relógios, um deles parado em hora morta, ida. Pela primeira vez desde que nasci, perdeu sua hora perfeita, padecendo sem corda. Estranhamente, ninguém pareceu notar, ou se importar. Senti um enorme alívio, maravilhado em culpa com a leveza do mundo, como se alguém desligasse um motor incômodo, barulhento, de volume altíssimo, mas que nos acostumamos ignorar. Com a chave de corda enegrecida pelos anos, reestabeleci a vida mecânica, pendular.

Mas nunca mais darei corda em mim.

Guardo assim esse relato, confissão escusa, em um dos relógios, meu favorito. Caro policial forense do futuro, creio que há material genético suficiente, assassino e vítima, na chave de fenda envergada da antiga caixa de ferramentas.

Se a corrosão do tempo não devorou tudo.







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