terça-feira, março 28, 2006
Agreste
Olhava a longa fila de formigas negras, gordas e irritadas, correndo na areia escaldante, avançando sobre tudo em seu caminho.
- Praga. – resmungou, jogando o resto do cigarro de fumo picado, ainda em brasa, no monte seco de espinhos para onde corria a fila. Estava quente demais para fumar.
A sombra da árvore, quase seca, era débil contra aquele sol cego, faminto, devorador de tudo. Sentia o suor escorrer pelo rosto, a cabeça quente demais, o chapéu insuficiente. Quando resolvia aparecer, o vento era ar abafado e carregado de podridão. Moscas zuniam aos milhares na carcaça de sua última cabeça de gado, apodrecendo ali mesmo onde tombara, somente couro e ossos.
- Peste.
Levantou-se. A menina pequena, três anos, não parava de chorar, lágrimas, ranho e areia escorrendo pela barriga inchada. Sua irmã batalhava com o fogão a lenha ao tentar cozinhar alguma coisa para o almoço. Um pouco de farinha, um pouco de água. Um pouco, muito pouco.
- Vagabunda.
Já fazia uma semana desde que Maria o abandonara, levando o único filho que não podia deixar para trás, ainda no ventre. Sem dizer uma palavra, colocou um punhado de roupas dentro da lata, quando amanhecia, e saiu para buscar água. Longe dali, longe dele, deixando-o sozinho com a filharada e a roça seca.
- Vagabunda.
A velha vizinha, quase cega, que nos primeiros dias ajudara cuidando dos meninos, logo voltou para sua solidão menos sofrida que aquilo, entre rezas e ladainhas. Disse que voltaria quando conseguisse ajuda.
-Vagabunda.
Sozinho ali parado, olhava devagar para o casebre de barro, para o céu sem nenhum branco, para a carniça, para as formigas. Entre a cacofonia das moscas e o choro agudo da caçula, ouvia seu próprio respirar, profundo e cansado. Era um homem forte, nascido e criado ali, mas não sabia mais o que fazer. Resmungava, fumava, bebia cachaça até dormir, resmungava. Os filhos evitavam-no, temendo a peixeira enferrujada que passara a carregar desde a fuga da mãe. Resmungava e riscava a areia com a lâmina.
- Vagabunda.
Não sabia onde mais procurar dinheiro. Tudo estava seco, morrendo, marrom e bege por quilômetros. Não podia deixar sua pouca terra para trás, não podia deixar todos aqueles filhos para trás, nem leva-los junto. E para onde, afinal? Só sabia trabalhar na enxada, e meses de procura devoraram a esperança de achar algum bico por uns trocados, por um bocado de comida. Enquanto isso as moscas voavam e as crianças choravam.
- Praga.
O estomago doía. Caminhou devagar até em casa, e pediu um gole de água para a menina mais velha. 11 anos? Notou como o corpo já começava a tomar forma de mulher, os peitinhos saltando na roupa gasta de criança. Bebeu, num gole rápido, a água quente e com gosto de barro. Bateu com o copo na mesa, observando a menina mexendo na panela.
Apanhou no baú o único vestido que a esposa não levara, e atirou-o na filha.
- Vista-o.
A filha ficou segurando o vestido nas mãos, a panela fervendo no fogo. Ele parado, em pé, ao lado da mesa, esperava... Sob o olhar duro e teimoso do pai, ela correu se trocar. Voltou logo, quase saltitante, e parou na frente dele. Aproveitara para escovar e prender os cabelos. Lembrava muito a esposa quando jovem. Ela percebeu alguma coisa em seu olhar, e quase esboçou um sorriso tímido.
Antes que perdesse a coragem, bruscamente agarrou aquele braço fino, magro e frágil, arrastando-a porta a fora.
- Vamos.
Assustada, ela até tentou resistir. Mas logo já estavam tomando a estrada de poeira, os olhos lagrimejando na claridade flamejante.
- Vamos, que mulher só passa fome se quiser.
E arrastou-a até uma parada de caminhoneiros, longos e quentes cinco quilômetros dali. Era um homem duro, mas não conseguiu olhar diretamente para ninguém. Nem para os sorrisos falsos, nem para a filha, muito menos para o vidro vermelho que cobria a lâmpada da casa onde a deixara.
- Vagabunda."He! El Justiciero buenos dias
Que tienes a decir
El Justiciero yo soy pobre
Que tienes a me dar?
" Tiengo chocolate quiente
tequila,
paga lo que deves"
El Justiciero cha, cha, cha
Que otra cosa puedo dar"