<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, setembro 24, 2007

Adeus 

A campainha tocou pela terceira vez naquela manhã.

Maria das Graças largou as batatas na pia e foi atender. Demorou longamente, em seus passos pequenos e lentos, para voltar, pegar a carteira e dar um trocado pro pedinte, além de um copo d'água.

Quando terminava de fazer o almoço, seu único filho chegou, com a camisa suada na barriga e nas costas, bufando e reclamando do trânsito dessa cidade, estúpido e irracional. Paulo estava faminto e nervoso, foi logo sentando na mesa. Desde que se separara, há quase 2 anos, e voltara a morar com a mãe, sempre tinha uma fome absurda. Já lhe rendera uns bons dez quilos de lastro. Mastigava salada, enquanto uma garfada generosa de carne assada e puré esperava espaço na boca, e a campainha tocou. Nervosa, impaciente, seguida de palmas.

Maria apertou uma mão contra a outra, Paulo saindo da tranquilidade momentânea que a comida lhe dava. Tentou dizer para ele terminar de comer, que ela ia ver quem era. Mas Paulo era igual ao pai, e já foi se levantando e indo em direção da porta, batendo os pés.

No portão, um mendigo usando um ridículo chapéu de jornal, espiava dentro da casa numa careta amorfa. Paulo parou distante, nem querendo ouvir o que ele tinha a dizer: '-Vai embora, não tem nada pra você aqui. Vai trabalhar.' O mendigo até tentou retrucar alguma coisa, insistir, mas Paulo foi até o portão latindo como um cão feroz, malditosanguessugaparasitavaiemboradaqui.

Voltou para a mesa, a mãe de cabeça baixa, segurando a carteira nas mãos. Ele sentou e voltou a comer, estava com mais fome ainda.

'Não gosto que faça isso, Paulo Sérgio.'

Só era chamado de Paulo Sérgio quando o assunto era sério. Por toda sua vida seu nome completo, duplo, dito assim por sua mãe, aterrorizava até o fundo de sua alma. Mas agora ele tinha 48, ela 67, e as coisas não eram mais as mesmas.

'Mãe, deixa de besteira. Era só um vagabundo, não era Deus.'

Ela estava com essa mania agora, todo mendigo ela achava que era Deus disfarçado, testando nossa generosidade. De onde ela tirou isso? Malditos programas da tarde, vivem enfiando idéias absurdas na cabeça dos telespectadores, asneira atrás de asneira.

'Não fale assim, Paulo Sérgio. Não blasfeme. E você não tem como saber.'





Maria servia o café, enquanto Paulo fazia as contas num caderno velho de espiral. Nunca se dera com computadores, engolia eles no trabalho. A calculadora e um lápis eram suficientes, o dinheiro dos últimos meses, não. Ele tentava arrumar serviços, vivia pulando de entrevista para dinâmica para teste para entrevista para classificados de jornal, mas não arrumava um fixo. 'Ter canudo, hoje em dia, não é garantia de vida feita pra ninguém.' E ainda tinha que mandar a pensão da ex-mulher, e sustentar a casa. A aposentadoria da mãe não comprava nem um terço dos remédios.

Calculou e recalculou, e estava no vermelho. Não só isso, descobriu que grande parte do rombo vinha da mãe. Porra. 'Mãe, olha só, não dá pra você sustentar todos os mendigos do bairro, e os amigos deles, eu não tenho como. Tem que parar com isso!' Tentou um tom diferente do que saiu. Maria se encolheu, chateada, exposta e frágil. 'Mas Paulinho, e se Deus...'. 'Deus não tem nada com isso aqui, mãe' apontava as contas 'quem paga sou eu, e não quero mais dar dinheiro pra esses desocupados, que procurem o governo, ou mesmo o Papa! Que tal tocarem lá no Vaticano, hein??' bateu na mesa, a xícara sambou e tilintou. Maria saiu em seus passos de gente velha, com mais pressa agora. 'Mãe...'

Paulo saiu logo depois, e no trânsito esqueceu do assunto. Ligou lá pelas 6 da tarde, para avisar que ia demorar pra chegar, mas ela não atendeu. Devia estar na missa.

O cursinho que fazia para concurso público acabou quase meia-noite. O pessoal estava animado naquela quinta-feira, aniversário de um deles, e para muita gente se embriagar é a grande solução para todos os problemas. Resolveram sair pra um bar, depois outro, a vida é pra ser vivida, carpe diem.








Chegou em casa de manhã, ainda um pouco bêbado (parara para comer antes), a roupa de ontem fedendo suor e cigarro, a cara torta e colorida pela boemia. Sete e meia, sorte que só tinha compromisso lá pelas dez. Tinha tempo de cochilar, tomar um café forte e sair.

Estranhou a cozinha vazia, a casa fechada. Chamou pela mãe, mas só obteve silêncio. Um alarme foi aumentando dentro dele, estridente como sirenes que anunciam bombardeios. O céu vai cair, preparem-se, escondam-se, salve-se quem puder, o céu vai cair.

Maria das Graças estava sentada na cadeira de seu quarto, parecendo dormir. Segurava nas mãos, ainda marcando a conta certa, o rosário antigo e gasto. Paulo se aproximou pisando em ovos, não entendendo que tinha dificuldades em enxergar pelas lágrimas que represava nos olhos. Ajeitou o xale em volta dela, o cheiro de gente velha evaporando e sumindo, só restando o perfume profundo, inesquecível, completo. 'Mamãe', abraçou.






Toca a campainha. Paulo, achando que era do IML, engoliu num gole o uísque, colocou o copo na pia e começou a se recompor para atender. Da porta, ainda segurando as chaves na mão, viu um mendigo, sujo, vestindo trapos e um chapéu de jornal velho e grosso. Se pendurava no portão, com seus braços finos de polvo tentando passar, o rosto espremido na grade, a boca larga de poucos dentes amarelos gastos, os olhos fechados num esforço grosseiro, parecendo defecar.
Era o mesmo mendigo que tinha mandado embora ontem no almoço.

Um eco de uma lembrança rolou como uma onda em sua cabeça, descontrolada. Não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo.

A gota de memória, ouvida nos bancos das igrejas, Não sou digno que entreis em minha morada, tantas e tantas vezes, foi se juntando em coro às semelhantes, mas dizei uma palavra e serei salvo, se tornando chuva, Não sou digno que entreis em minha morada, rio, mas dizei uma palavra e serei salvo, mar, Não sou digno que entreis em minha morada mas dizei uma palavra e serei salvo, e oceano, Nãosoudignoqueentreisemminhamoradamasdizeiumapalavraesereisalvo.

Paulo umideceu os lábios e caminhou a passos de nitroglicerina. Destrancou o portão, girando a chave em duas voltas robóticas. O mendigo se afastou um pouco e sorriu feroz. 'Doutor', e começou a série de murmurinhos que fazem às vezes alguns pedintes. Nãosoudignoqueentreisemminhamorada.

Abriu o portão num gesto largo, masdizeiumapalavraeserisalvo, 'Não mandei você embora, cretino? ADEUS!' e derrubou o mendigo com um direto, fazendo voar seu chapéu de jornal. Rangeu os dentes, Nãosoudignoqueentreisemminhamoradamasdizeiumapalavraesereisalvo, e chutou as costelas, tão forte que alguma coisa em alguém estalou partido.

Avançou com os punhos cerrados para cima do homem encolhido, Nãosoudignoqueentreisemminhamorada, urrando coisas além de ódio e insanidade bruta, masdizeiumapalavraesereisalvo.



Foi contido pelas pessoas da padaria da esquina, que viram tudo e vieram correndo quando a coisa ficou feia. Paulo, furioso, derrubou um e só foi seguro por quatro homens, um deles um grandão de academia. Seu rosto escorria lágrimas, suor, ranho e saliva, vermelho e fervendo com o sangue do mendigo no chão, um animal feroz velho e asmático, bufando e uivando alto.





Quando a polícia chegou, depois da ambulância, Paulo era consolado, sentado na sarjeta, por vários vizinhos. Júlia, amiga do cursinho que morava na rua de trás, tentava lhe dar água com açúcar. O mendigo ferido era socorrido.

Dona Zuleide, vizinha do lado direito, chocada e sentindo muito a perda de Dona Maria, disse que Paulo era um rapaz muito bom e responsável, cuidava sozinho da mãe e ainda tem que mandar dinheiro para a ex-esposa, essa sim, pessoa cruel e exploradora.

Dorival, da padaria, contou que o mendigo estava mexendo no portão da casa, Paulo abriu, discutiram e Paulo foi pra cima, mas achava Paulo gente fina, trabalhador honesto que acabara de achar a mãe morta em casa, coitado.

Coronel Soares, aposentado da Aeronáutica, nada testemunhou mas fez questão de declarar que aquele indigente há tempos perturbava o bairro, ameaçando a segurança de mulheres e crianças.

Cabo Baptista, decidindo relatar como briga de vizinhos já resolvida pelas partes ali mesmo, sem necessidade de ir até o DP, perguntou para o Soldado Silva o nome do meliante ferido, encaminhado ao PS:

'Severino de Jesus, 33.'



"It would be very nice if there were a God who created the world and was a benevolent providence, and if there were a moral order in the universe and an after-life; but it is a very striking fact that all this is exactly as we are bound to wish it to be"

sábado, setembro 22, 2007

'Não sei quantas almas tenho' 

Alguns destemidos aventureiros mergulham no misterioso conteúdo do Bau aí ao lado, e lá vou eu seguindo seus passos e os meus próprios. Além de trocentos erros de ortografia e atos terroristas destrambelhados na Gramática (perdoem a falta do Editor) encontra-se muita coisa interessante...

Necessário, talvez, o aviso, copiado de um livro:

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opnião.

Cautela nunca é demais. Se eu mesmo me choco, rio, adoro e repudio o que está guardado aqui, imaginem um leitor desavisado, ou muito pior, enviesado.

Como disse Gabriel García 'Buendía' Márquez: "A vida não é aquela que uma pessoa viveu, mas a que ele recorda, e como a recorda, para contá-la".

Multiplique isso por um bocado de imaginação descontrolada, e o Mestre Fernando Pessoa conclui bem o assunto:



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.



sábado, setembro 01, 2007

Se não assistiu, não vai entender 

Já era tarde da noite quando encontrei o filme na TV. Legendado, ainda por cima.

Depois de tantos anos, é curioso verificar, em uma breve análise, que aquilo ficou em mim. Marcou ideais, torceu sonhos, deixou seu rabisco colorido no infinito universo dentro de minha cabeça, éter inconsciente.

Poderia dizer, falseando pretenções intelectuais e sofisticadas, o nome de um obscuro, ou consagrado, filme cult.

Mas sou um sujeito de minha época, histórico, e vivi uma infância na tal década perdida, e uma juventude na última década do século XX. Geração coca-cola na veia, talvez a última geração analógica até a próxima idade das trevas.

Tão bombardeado pela indústria cultural como qualquer um, já comentei aqui, bem no início, o impacto de Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller's Day Off, 1986). Ontem, ficou bem claro o estrago feito por Caçadores de Emoção (Point Break, 1991) .

Não reduzo a elementos simples, diretos, arrancados da tela e enfiados de qualquer jeito em mim, como um bau cheio de velharias. São pequenos cacos, muito sutis e simbólicos, misturados com todo o resto que chamamos vida, memórias e emoções sem sentido. Mais um vento forte em um dia de chuva, que esculpiram a rocha, bem plástica na época, de minha personalidade.

Fato é que preciso arrumar logo uma máscara de um ex-presidente, do Collor seria ideal. Ou jogar na areia de uma praia da Austrália meu distintivo do FBI.

Ou ainda pular de um avião sem pára-quedas.

Definitivamente, surfar.




" 'Vai ser tudo derrubado', diz o Velho.
'Antigamente era melhor?', pergunta Augusto.
'Era.'
'Por que?'
'Antigamente tinha menos gente e quase não havia automóveis.'
'Os cavalos, enchendo as ruas de bosta, deviam ser considerados uma praga igual aos carros de hoje', diz Augusto.
'E as pessoas, antigamente, eram menos estúpidas', continua o Velho, com um olhar triste, ' e tinham menos pressa.'
'O pessoal da antiga era mais inocente', diz Kelly.
'Era mais esperançoso. A esperança é uma espécie de libertação', diz o Velho."

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Weblog Commenting by HaloScan.com